TEATRO


 

Terça em cena traz cenas curtas de dramaturgos conhecidos e novos autores ao palco do teatro Cemitério de Automóveis.


Meu texto Deep Web foi transformado em um monólogo intenso na 27ª edição do projeto.

 
 
 

DEEP WEB

Olha só como você é bonita. Assim, sem artifícios. Sem aquele carro importado pregado no salto. Sem o rabo de cavalo, que te aproxima do teto e te distancia do resto do mundo. Já pensou nisso? Entregue. Ocupando apenas o espaço do seu corpo. Sem vestidos bem cortados. Sem sua “pasta de negócios”, a coleirinha corporativa. Agora abre a boca. Qual colher você prefere: essa ou essa? Isso, boa garota. Você é muito criativa. Substituir o macarrão por fios de cabelo, que senso de humor! Qualquer um pensaria em miolos. Percebe? Malditos publicitários. Você fica muito mais atraente assim. Sem o espartilho caro. Pretendia transar com alguém quando saiu de casa ou sempre usa esse tipo de peça? Você tem classe. É inegável. Mesmo com os membros pendurados - o que não é exatamente algo comum. Olhando para as suas coisas assim, juntas. Percebe? Eu, por exemplo. Um cara inteligente. Acho que você já teve a oportunidade de notar. Mas eu nasci pobre. Malditos ancestrais. Coisas empilhadas demais. Já pensou nisso? Navios e ratos e gente demais. Não prestam. A mesma inclinação entre o logotipo da bolsa e a curva envelopada da sua saia. A forma como o traço final do seu delineador encontra a cor secundária da sua sombra. Eu nem precisaria cravar. O compasso, eu digo. Exatos 37º graus, percebe? Desculpe, afundei um pouco seu globo ocular. Nada que vá comprometer nossa obra. Você está muito, muito mais agradável assim. E os olhos continuam salgados. O que é essencial, porque daqui a exatos 30 minutos, você sabe. Vamos precisar de mais material. Eu organizo. Elas vêm como jatos, eu apenas organizo. O tratamento da carne com as lâmpadas. Os parasitas. Nada de remédios. Nada de pigmentos. Apenas Química e paciência. Livros, programas policiais e limpeza. Malditos apresentadores. Não precisamos da narração. Da indignação. Era o certo. Muitas ideias, é preciso ter calma. E orações. Percebe? É difícil atingir. A sutileza, eu digo. Os detalhes. Já pensou nisso? Mas também não é o caso de subestimar meu tão suado senso estético. Veja todas essas reconstruções e inversões. As sobras dos mamilos na parte interna da sua vagina. Só o excesso. O que não presta. Harmoniosamente depositados, sem corromper os tecidos. Tons diferentes, eu sei. Não é o ideal. Se você fosse um pouco mais agressiva – como eu tenho certeza que foi em grande parte dos aspectos da sua vida – não teria amamentado. Malditos laços. Percebe? Nos pouparia de ter que lidar com tons diferentes sobrepostos. Mas não é isso que vai tirar meu humor. Um beijinho no Jimmy? Isso, boa garota. Eu não lhe culpo: são seres adoráveis. Os roedores, eu digo. Você está realmente muito sexy assim. Tem um belo fêmur. Proporcional, elegante. Percebe? É como eu digo: calcanhares e joelhos. Não se pode separá-los. Por que não responde mais? Se eu tirar esse dente obsceno do caminho você acha que melhora? Vamos tentar. Como eu sou um cara organizado – alguns diriam até “meticuloso” – sei que basta abrir a segunda divisão da caixa de ferramentas. Qual você prefere: esse ou esse? Isso, boa garota. Foi com essa belezinha que o meu pai arrancou a glande do saudoso tio Camilo. Não preciso dizer que ele não era exatamente bem dotado, percebe? Um paquiderme de 130 quilos. Que não parou de sorrir nem quando o velho se cansou e atirou. Cicatriz perfeita. Gosto forte e adocicado. Quanto tempo você acha que eu demorei para conseguir? Um padrão, eu digo. Droga, ele entrou. Mas eu não quero sair. John, não falta muito. Me deixa fazer mais. Maldito John. Eu nunca vejo, percebe? Era o certo. Por isso nos reunimos à mesa. E todas as orações. Não temos o direito de errar. Já pensou nisso? A mãe nunca comeu. Você acha que aguentaria a agulha agora? Qual você prefere: essa ou essa? Isso, boa garota. É importante que você entenda que ainda não acabamos. Os sulcos têm suas próprias leis. Percebe? Aprendi com minha avó. É claro que é mais prático. Com a lã, eu digo. Eu já nem sinto mais o odor. O que é positivo. Me causaria uma ereção. Não se deve desperdiçar fluidos. O John não gosta, poderia nos atrasar. Malditos ponteiros. Não é bonito você se despir de tudo e ficar assim, acuada, com merda escorrendo pelos joelhos? Eu não sei o que você andou comendo nas semanas anteriores, mas eu gosto. Das cores, eu digo. Estamos finalizando por aqui. O que significa a escolha do cartão. De qual você gosta mais: esse ou esse? Isso, boa garota. Eu sabia, percebe? Um leve tom de pêssego ao fundo. O tom certo. Não é exatamente evidente. Já pensou nisso? Você precisa franzir os olhos para identificar. Com leveza. Uma dança, percebe? Eu esperava que você fosse capaz disso. Seu marido vai gostar do presente. Na sala, bem grande. Eu me apaixonaria por você em outros tempos. Percebe? E não aqueles borrões sem sentido. Muito, muito melhor assim. Não é arte. Isso é arte. Você me procurou. Detalhes. Come, mãe. Só prova. As pessoas me procuram. Não é errado, nos reunimos à mesa. Foi o John. Eu nunca vejo, só a voz. Você me deu um cheque. Uma poesia. Que te pega pelo pescoço e te joga pelado no meio do deserto. Seu marido não é um artista. Um solo alucinado de contrabaixo. De modo que vai chegar perfeito. O quadro, eu digo. É por isso que temos todas essas regras e horários. Já pensou nisso? Minha única dúvida é o tamanho da tela. O que você acha: essa ou essa? É claro que agora tudo vai depender do funcionamento final do seu intestino. Dizem que as mulheres são muito suscetíveis a mudanças de ambiente.